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Nem ouro nem prata: por uma Igreja que renuncia à aparência e à realidade da riqueza

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No Calendário Litúrgico vive-se o Tempo Comum, que apresenta no 2º Domingo a festa do Batismo do Senhor. As leituras referentes a essa celebração oferecem alguns símbolos para reflexão. O Salmo 28 clama a gloria e a adoração ao Senhor com santos ornamentos. O Evangelho de Lucas (3,15-16.21-22) apresenta Jesus que se batiza com água junto ao povo que o aguardava com expectativas. Enquanto rezavam, acima de Jesus pairou a pomba, símbolo do Espirito Santo que foi acompanhado por uma voz: “Tu és o meu Filho amado, em ti ponho o meu bem-querer”.

Ao celebrar o dia do Batismo do Senhor no Santuário Santa Cruz da Reconciliação, em São Paulo, os Missionários Combonianos propõem uma reflexão sobre a simbologia do ouro presente nos objetos litúrgicos. Nem ouro nem prata: se fazem presentes na liturgia do domingo a água e o fogo, a pomba, com evidência para o servo chamado para a justiça, a fazer o bem e curando a todos. A Família Comboniana optou por celebrar a Santa Eucaristia com um cálice e uma patena de madeira proveniente do Pau Brasil, como passo para desprender a Igreja do ouro. Na Igreja Católica, o metal dourado reluzente é usado nos objetos artísticos, nas decorações e, sobretudo, nos vasos sagrados para a celebração da Eucaristia. Entende-se, com isso, dignificar os símbolos do encontro entre a humanidade que celebra e Deus. Também na cultura bíblica o ouro é associado à realeza e à divindade.

No batismo no Jordão, Deus se apresentou em seu filho, que assumiu uma cultura e “andou por toda a parte […] e Deus estava com ele”. Ao atribuir contexto aos vasos sagrados, que recebem ou guardam o Corpo ou o Sangue do Senhor, urge também a reflexão sobre a utilização do ouro, metal que carrega em sua extração o martírio de comunidades e a morte da Mãe Terra. O ouro é um dos produtos mais cobiçados durante centenas de anos de colonização, escravidão e saque de nossas terras. Buscando o ouro, milhões de vidas foram sacrificadas e a história de nossa Pátria Grande prejudicada. Hoje, a extração de ouro avança em escala industrial, com lavagem de dinheiro sujo e violação sistemática da lei, destruindo e ameaçando territórios e comunidades. Na Amazônia acontecem os maiores estragos e a mais brutal violência para extrair ouro. Os exemplos mais recentes são os 20 mil garimpeiros em terras indígenas Yanomami, provocando conflitos e contaminando os povos pela Covid 19; as ameaças e violências contra as mulheres Munduruku, no Pará; a morte de duas crianças Yanomami sugadas pelas dragas de garimpo; as centenas de balsas e dragas em Autazes, no Rio Madeira, Amazonas; as grandes quantidades de mercúrio despejadas nos rios onde a mineração e garimpo de ouro estão presentes.

Muito ouro é armazenado em cofres como reserva de valor, como ativo financeiro ou como joalheria. Grandes países da Europa e os Estados Unidos mantêm mais de 60% das suas reservas internacionais em ouro. No Brasil, são aproximadamente 67,4 toneladas do metal . Já extraímos ouro suficiente da terra e as reservas de ouro da terra são limitadas. No entanto, a mineração de ouro continua aumentando. Para chegar a um anel de ouro de 10 gramas é preciso explodir e retirar 20 toneladas de dejetos, utilizar 1,5 Kg de cianeto e 7 mil litros de água. É um metal de luxo que carrega um histórico de violações de povos e comunidades. O metal também banha os objetos litúrgicos para o culto divino, como o cálice e a patena, com finalidade de tornarem-se sagrados em razão de sua destinação exclusiva e permanente à celebração da Eucaristia (PR – RDEA, Cap. VII, 1) .

A questão de fundo a ser feita sobre a matéria e forma dos vasos sagrados é se Deus se sentiria adorado e respeitado pelo uso deste metal “precioso”, cuja extração carrega tantas injustiças. As orientações da Santa Sé, no Vaticano, indicam a possibilidade de que os referidos objetos sejam enculturados para materiais nobres de cada região, como madeiras, visando antes à nobre beleza que à mera suntuosidade (SC 123). Logo, os vasos sagrados de madeira – já utilizados em outras etapas da história da Igreja – nos reconectam ao ciclo da natureza e da semente que morre e dá vida, e nos incluem na dimensão cósmica e pulsante da celebração eucarística. Quando decorados com os grafismos indígenas, nos recordam a encarnação de Jesus em todas as culturas, o respeito que é devido a elas, a reconciliação que somos chamados-as a promover numa história de tamanha exclusão.

Em consonância aos mais de 500 bispos que participaram ou subscreveram o Pacto das Catacumbas, durante o Concílio Vaticano II, em 1965, recordam-se compromissos proféticos que diziam: “Para sempre renunciamos à aparência e à realidade da riqueza, especialmente no traje (fazendas ricas, cores berrantes), nas insígnias de matéria preciosa (devem esses signos ser, com efeito, evangélicos). Cf. Mc 6,9; Mt 10,9s; At 3,6. Nem ouro nem prata”. Também nós, hoje, reassumimos esse compromisso, em nosso jeito de celebrar, viver, sermos solidários-as e promovermos a justiça e a paz.